EPIFANIA
lobos e árvores se entrelaçam
na manhã em que nasço
e chove e sinto pancadas
no telhado e rebolos nos céus.
não sei se uivos,
ganidos de arvoredos
e vendavais que ainda
hoje me enlaçam vêm dali.
mas sei que lobos e árvores
eriçam minhas retinas
e emolduram minha memória
movida a raios e trovões.
AO RÉS DA FERA
“Eu também já fui brasileiro
moreno como vocês.
Ponteei viola, guiei forde”.
Carlos Drummond de Andrade
p/ antonio brasileiro
do país profundo,
de patas fortes
e abas largas,
cheirando a âmago
e guabiroba, nada
resta. e nada restará.
avariado está
o caminho das águas,
o labor das abelhas;
e da razão dos lobos,
fez-se lenha;
da lenha,
brasas mortas
sobre as quais pisam pés morenos,
brasileiros, de inativo afeto.
ao rés do chão,
sem giz nem carvão
alheio
a
qualquer uivo
eis a fera que um dia
se quis profundo país.
AOS PÉS DE NINGUÉM
p/ luciano correia
a mim me bastariam
uma bicicleta pra varar
e poluir
o mundo de más intenções
um chapéu de teto furado
para pouso de passarinho nenhum
um ou dois dedos
de prosa com um desigual
em fala de puríssima incompreensão
um frasco topado de vazios
uma radiola digital sem braço
um disco ralado
um decodificador às avessas da prosa dos iguais
e a esperança - ó minha doce
e sacripanta esperança -
de não estar aos pés de ninguém: bicho
que se bastasse no bicho de mim mesmo.
pronto: a mim me seriam suficientes
issos, e nada mais daquilos.
O MISTERIOSO
roubava raios e trovões,
travava os ventos
e bania as cerrações.
um dia o chamaram deus
no centro de um dos
seus secretos redemoinhos.
ele se enfezou,
e dissolveu-se
na tempestade.
nunca mais voltou.
e aqui deixou sabedoria,
forças seculares, óculos,
um canivete, um isqueiro
e dois talhos num pé de muro.
OBITUÁRIO DA TRISTEZA
do sol, o nome da rua
em que nasci
no alto
do alto alegre,
de testa pro curral de mané bengo.
luz para dissipar
qualquer travo de treva.
no mais,
era novembro
de verão, trovões e chuvarada.
uma farra de raios e relâmpagos.
e ainda marajó,
o cãozinho familiar
branco, felpudo quase-algodão
fez festa para o acontecido.
sim,
onde lugar para tristeza nesse tecido?
Jozailto
Lima é jornalista e poeta e, como diria um poema
do Cacaso, “não nega sua raça, faz verso por pirraça e também por precisão”.
Nasceu em Várzea do Poço, Bahia, em 11.11.1960, onde viveu até os 19 anos, e
está em Aracaju há 26. É autor de quatro livros - A Flor de Bronze e
Outros Poemas de Mediamor, 1986, Plenespanto, 1996, Retrato
Diverso, 2004, e Viagem na Argila, 2012. Os três primeiros,
premiados na Bahia e em Sergipe. Sua poesia faz profunda inquirição do sentido
da existência. Sai em breve Ainda os lobos, seu quinto livro, agora
pela Editora Patuá.