A Festa de Nossa Senhora da Boa Morte, realizada em Cachoeira, reconhecida como bem cultural do estado desde 2010 pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac), começa hoje, 13 de agosto, atraindo para a cidade localizada a 120 quilômetros de Salvador uma multidão que acompanha avidamente os cuidadosos ritos coordenados por uma instituição formada exclusivamente por mulheres negras. Nos dias da celebração elas levam para as ruas a encenação dos complexos dogmas marianos da dormição e assunção de Nossa Senhora aos céus, ou seja, seu triunfo completo sobre a morte. Essa comemoração com outras características, mas também sob a direção de mulheres negras já ocorreu em Salvador na Igreja da Barroquinha. Em A TARDE foram feitos três registros que ajudam a preencher as lacunas ainda existentes sobre a Festa da Boa Morte soteropolitana. O primeiro deles foi publicado em 1913, ano seguinte à fundação do jornal:
“Antehontem, às 4 horas da tarde, realisou-se a procissão de Nossa Senhora da Boa Morte, com a pompa e solennidade que revestem estes actos publicos da egreja. Após o percurso das ruas do costume, recolheram-se as imagens à Igreja da Barroquinha, havendo por esta occasião bençam do Santíssimo Sacramento. Hontem às 10 horas da manhã celebrou- se a missa festiva, com acompanhamento de cânticos e orchestra, pregando ao Evangelho o padre Luiz da França. À tarde houve bençam do Santíssimo”. (A TARDE, 16/8/1913, p.2).
Embora curtas, as referências nesse texto publicado na edição de 16 de agosto de 1913 são preciosas porque a maioria expressiva dos registros da igreja e da importante Irmandade do Senhor Bom Jesus Martírios que funcionou no espaço, hoje um centro cultural sob a gestão da Prefeitura Municipal de Salvador, desapareceu durante as fases de abandono do templo que inclui até um incêndio. O que se sabe sobre a Devoção da Boa Morte na Igreja da Barroquinha foi registrado em trabalhos de Pierre Verger, Odorico Tavares e João da Silva Campos. Este último concentrou-se em detalhar a festa em seu livro Procissões Tradicionais da Bahia onde aponta 1935 como o último ano da celebração em Salvador.
“Deixou-se de fazer a procissão de 1930 a 1934. Saiu no ano seguinte. Nem de longe assemelhou-se à dos tempos passados. Mínimo o cortejo, e modernizado. Mocinhas de véu. Criancinhas vestidas de anjo. Cadê os negros todos prosas, metidos no fraque e no croazê? Cadê os benditos? Cadê a multidão melanoderma, que se comprimia azougadamente em derredor do esquife? Desapareceu tudo. Tudo...”. (Procissões tradicionais da Bahia, João da Silva Campos, p.362).
O tom nostálgico adotado por Silva Campos é o de alguém que presenciou esta última realização da festa:
“Quando o cortejo se moveu, curto, mesquinho, sorumbático, despido da menor imponência, na tarde nevoenta, triste e fria, mal a meu grado senti-me acicateado pela lembrança das procissões que na meninice ali vira, e, tomado de funda melancolia, apressei-me em me afastar...Agora, mortos Bibiano Cupim e Aninha, baluartes da Devoção de Nossa Senhora da Boa Morte, da capela da Barroquinha, esta procissão está positivamente morta” (Procissões tradicionais da Bahia, João da Silva Campos, p.362).
As referências do texto são para Bibiano Cupim, um importante personagem nas articulações de manifestações negras e que esteve muito vinculado à Igreja da Barroquinha, mas de quem ainda se sabe pouco, e Maria Eugênia Anna dos Santos, a fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá. Mãe Aninha e outras mulheres negras de prestígio, ligadas ao candomblé, assim como aconteceu com a Irmandade da Boa Morte de Cachoeira, estavam vinculadas a esse culto que é uma das invocações à Nossa Senhora dos católicos.
Autor do livro O Candomblé da Barroquinha-Processo de constituição do primeiro terreiro baiano de keto, o doutor em antropologia e professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Renato da Silveira traçou neste trabalho um panorama do complexo mundo de africanos, crioulos, mestiços escravizados e libertos na ocupação da Barroquinha. “Ali foi um ponto de efervescência da cultura afro-brasileira”, destaca Silveira.
No livro, Silveira mostra como as irmandades, instituições do poder português, hospedaram outras experiências culturais de base africana. De acordo com o antropólogo, organizações como a Ogboni e Geledé, além de cultos a divindades africanas e à ancestralidade, com outras interpretações sobre a morte, estavam inseridas no contexto da Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios, que funcionava na Barroquinha desde 1764. Mas Silveira defende que, embora Pierre Verger tenha afirmado que na Barroquinha estava uma Irmandade da Boa Morte, tratava-se de uma devoção. “Isso porque a irmandade tinha uma estrutura legal mais complexa do ponto de vista civil e canônico. Tanto a de Salvador como a de Cachoeira estão em um status mais simples, informal e isso de certa forma servia também para driblar a fiscalização e controle do poder colonial”, explica o antropólogo.
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